O absurdo do Zé Limeira.
A primeira vez que ouvi falar em Zé Limeira foi no ano de 1974, durante uma noitada de improvisos no Centro de Turismo do Ceará, em Fortaleza. Naquele prédio em estilo neoclássico, na região central da cidade, construído no Brasil imperial, por mais de 100 anos funcionou a principal cadeia pública do Estado, que desativada, acolheu o Centro de Turismo do Ceará. Quando os presídios foram transferidos para as regiões periféricas da Capital, o majestoso prédio ficou ocioso, até que o governador Cesar Cals mandou promover uma grande reforma, adaptando as celas para lojas e outros espaços para museus e restaurantes.
E como se tratava de uma ferramenta para abrigar a cultura popular, era muito natural que tivesse uma programação noturna, onde os artistas do povo pudessem se apresentar.
Eu preferia as cantorias. Em um destes encontros, fui apresentado ao Dr. Chico Linhares, pesquisador da arte do improviso, que depois, em parceria com o cantador Otacílio Batista, publicou uma sofrível antologia de cantadores. Linhares não se encontrava em paz espiritual naquela noite. E veio a mim, como se eu tivesse alguma familiaridade com o fato que motivou a sua ira. E foi logo detonando:
- Estou aqui colérico. Um jornalista lá da Paraíba, chamado Orlando Tejo publicou um livro sobre o Zé Limeira, um cantador que disparava coisas sem nexo, mas que se tonavam engraçadas. Mas, fique sabendo que o Zé Limeira não existiu. Quem fez estas estrofes foi o Otacílio. Você sabe que Otacílio é o gênio da raça. E o sacana sequer citou o seu nome no livro.
Não precisava ir muito adiante para entender que o Dr. Chico não passava de um tremendo bajulador do “cantador de São José do Egito”. Alguns dias depois estive em Juazeiro do Norte para entrevistar o cantador Pedro Bandeira e tive acesso ao livro. De certo modo, fiquei pensando que o Zé Limeira poderia até não ter existido mesmo, mas em conversa com o meu pai, disse-me ele que conheceu o “poeta do absurdo”, no tempo em que comboiou na Paraíba. Sendo assim, fiquei ciente de que o “cantador do Teixeira” de fato existiu, como narra o Orlando Tejo, que diz ter o conhecido em 1950, na cidade paraibana de Campina Grande.
Muitos anos mais tarde, a irmã Auxiliadora, uma freira filha da cidade do Teixeira que veio trabalhar em Tarrafas, me garantiu que conheceu Zé Limeira pessoalmente e fazendo cantoria na residência dos seus pais.
Hoje, eu entendo que Otacílio Batista entrou nessa história, porque o número de estrofes colhidas por Orlando Tejo, não eram suficientes para compor um livro. Teria o jornalista proposto ao cantador do “Vale do Pajeú” a produzir algumas sextilhas e glosas meio parecidas com as de Zé Limeira. Muito embora, sem a presença da sensibilidade do Zé, que construía seus versos espontaneamente.
Transcrevo aqui algumas glosas da lavra do “poeta do absurdo”.
Eu fui cantar no Recife,
Dentro do pronto socorro,
Ganhei duzentos mil reis.
Comprei duzentos corro,
Morri no ano passado,
Mas este ano não morro.
Versejando sobre a vida de Napoleão Bonaparte.
“Napoleão era um
Bom capitão de navio,
Sofria de tosse braba
No tempo que era sadio,
Foi poeta e demagogo,
Numa coivara de fogo
Morreu tremendo de frio”.
A minha história é pequena,
Conta tudo que se deu,
Que Napoleão morreu,
Na Ilha de Santa Helena.
Ô coisa pra fazer pena,
Um homem quando se arrasa,
Viveu, lutou mandou brasa,
Ensinou numa cátedra,
Morreu no pé de uma pedra,
Dum livro que tem lá em casa
Escrita pelo Advogado, Jornalista, Cordelista e guardião da Cultura de Assaré: Mestre Jesus Leite
ESCRITA POR: Jesus Leite
Pobre, sempre pobre. Negro sempre negro.
Infelizmente a realidade é esta: pobre nunca foi e tão cedo não será inserido no agrupamento daqueles que se definem como “gente de bem”. Ora, a razão é simples e os exemplos práticos estão sob os nossos olhos. A estas pessoas detentoras de bens materiais, na sua grande maioria, abandonam a sua própria dignidade, passando a entender que está acima de tudo e a tudo pode rejeitar, sem o menor escrúpulo, porque os seus recursos financeiros falam mais alto. Diante deste orgulho que invade o seu mundo de arrogância, a vítima principal é a criatura pobre. Se bem que a pessoa de cor, se for pobre, recebe o mesmo tratamento. Pois, quando o negro se apresenta com a carteira recheada, a sua cor se esvai na amplidão dos vales e montes. No entanto, negro rico anda distante um do outro, porque os que se dizem brancos, marginalizaram propositalmente esta raça, que tanto fez pelo crescimento econômico do Brasil.
Poucos setores da sociedade se preocupam com esta camada de viventes humanos, que necessita muito mais de políticas inclusivas, como cobra Patativa do Assaré em sua lavra, do que esmolas. Mesmo quando vivemos em plena democracia, quem sai em defesa dos menos favorecidos, será visto como pessoa maléfica aos interesses do progresso. Diga-se de passagem, um progresso que vem favorecer cada vez mais aos empresários e grupos econômicos, que concentram a renda. Riqueza produzida à custa do suor do humilde empregado.
Valho-me destas observações, para externar a minha indignação relacionada ao feriado deste dia 20 de novembro. É porque seja eu contra o feriado? Jamais...
Isso porque eu sou um daqueles que contestam o tratamento excludente que envolve o negro. Já escrevi muito e muito irei ainda escrever, (enquanto a morte não me levar), para denunciar a pior das injustiças já registrada neste País. O negro, mesmo na condição de escravizado, foi o responsável pelo processo desenvolvimentista rural e urbano, enquanto durou a escravidão e até depois. Tomando como exemplo a cultura canavieira, que foi base da economia do Brasil colonial, imperial e até mesmo no período republicano. O negro fazia parte de todas as etapas de produção: preparava o solo, plantava a cana, limpava, cortava, moía, cozinhava a garapa e era o mestre. Depois da alforria foi desprezado ao invés de ser contratado como homem livre. Os fazendeiros e empresários, revoltados com o Império, vingaram-se daqueles que deram o sangue para construir fortunas.
Sem me alongar muito, quero apenas lembrar e advertir mais uma vez, como sempre faço, que depois de 136 anos da Lei Áurea, o Brasil ainda precisa saudar este grande débito que tem com os afrodescendentes.
Pois muito bem. Depois que o dia 20 de novembro se oficializou como feriado nacional, vejo claramente na média, exposto em formato duvidoso, de que a raça negra não merecia tão grande prestígio. E para disfarçar a segregação intuitiva, abrem manchetes: “Você sabe porque o dia 20 é feriado?” ou “Presidente Lula sanciona lei criando mais um feriado” e outras coisas parecidas. Quando abrimos a página, sentimos claramente a provocação, induzindo as pessoas a tomarem um posicionamento diferente da realidade.
Ora, meus amigos. Celebrar o Dia da Consciência Negra com um feriado nacional, é o mínimo que se pode fazer para dá relevância a tudo aquilo que o negro contribuiu para fazer do Brasil um país plural. Mas, não basta ser plural. Tem que ser acolhedor. E acolher a raça negra é um dever irrevogável. Entendamos que somos um país miscigenado. E a miscigenação tem objetivo de unidade. Então, não falta nada, além da destruição do preconceito, para sermos uma única nação pacifica, porque a beleza já temos. É preciso que estes negacionistas das mídias sejam relegados ao ostracismo. Eles produzem o mal. E não é isso que queremos. Portanto, viva o Dia da Consciência Negra.
ESCRITA POR: Jesus Leite
Não falou mais.
Em uma das minhas caminhadas em final de tarde, passando em frente ao Hospital Municipal Nossa Senhora das Dores, vejo o médico e meu compadre Dr. Gerardo Acosta Romero, de braços cruzados, observando o vai-e-vem dos veículos na CE 175, via que cruza o Assaré. Tentei passar desapercebido por ele, para não perder o ritmo das passada, mas escuto a sua voz:
- Ei compadre. Passa por aqui, está com medo de mim?
Arrependo-me e vou ao seu encontro. Gerardo era meu compadre tive a honra de batizar a sua filha Jorrana. E para me desculpar melhor da gafe cometida, encontrei a saída, elogiando a sua aceitação como o médico mais querido na cidade. E não estava mentindo. Pois, nos dias dos seus plantões, o Hospital não oferecia espaço suficiente para acomodar tanta gente, querendo consultar-se com ele.
- Não esperava encontra você tão folgado neste momento, compadre. – Admirei-me.
- Folgado que nada, compadre. Já atendi mais de 120 pacientes desde o início do plantão. Entrei às 7 horas da manhã e só pude almoçar agora. As pessoas não entendem que as consultas são feitas nos postos de saúde, porque o Hospital é somente para emergências e internamentos. Mas, no dia que estou aqui, correm tudo pra cá. E se não atender, sou capaz de ser linchado.
- Quem manda ser você um excelente médico? – Elogiei.
Ele voltou-se para mim, com o rosto meio fechado, como quem está acometido de alguma mágoa e, com a sua fala bem carregada no ‘portunhol’ , disparou:
- Hoje, compadre, está fazendo 17 anos que sai da Costa Rica. E nunca mais voltei lá. Vim pra cá por intercâmbio. O certo é que conclui o curso de medicina e não mais voltei. O povo brasileiro me cativou. E as meninas também. - E deu aquela risada atrapalhada.
Era costa-riquenho, mas bem desamoroso a tudo que deixou por lá. Dificilmente falava sobre o seu torrão, a não ser quando provocado. Tecia algumas palavras e só.
Gerardo era um médico de hábitos, até certo ponto, meios bizarros. Como por exemplo: quando se achava competente para devolver a saúde de uma pessoa, não mandava que ela voltasse para as revisões. Ele fazia o acompanhamento em domicílio. “É para ver se o doente está tomando os medicamentos corretamente e avaliar o estágio da doença”, dizia. É tanto que quando saia do plantão, não ia para casa sem ver os seus pacientes. Coisa que poucos ou nenhum médico assume esse tipo de missão gratuitamente. Ele só transferia um paciente quando se sentia vencido no seu conhecimento da medicina. Mesmo assim, ao encaminhar um doente para outros centros mais evoluídos, fazia o relatório identificando o mal que acometia aquela criatura, na maioria das vezes, sem precisar dos exames laboratoriais.
Naquela tarde em que conversávamos, aparece quase que do nada, uma ambulância em marcha rápida. O condutor do veículo, desce rapidamente, e grita: “Doutor, um homem passa mal e tem que ser reanimada aqui na maca do carro, imediatamente”. Gerardo corre e ao observar o paciente desmaiado, já fornece o diagnóstico: “Este homem está morto. E não se trata de parada cardíaca, ele se enforcou, pelo jeito...”
Depois de descer da ambulância, ele recomenda: “Levem ele para a pedra e as meninas vão chamar o pessoal do IML. Eu não posso mais fornecer laudo depois que foi implantado o IML Cariri. Mas, ele morreu asfixiado por enforcamento. Credo...”
Uma mulher ao seu lado, chora em desespero, ao ouvir o diagnóstico final do médico. Gerardo, tomado pela curiosidade, dirige-se a senhora: “Você era mulher dele”. A mulher, quase sem fala respondeu: “não doutor, sou irmã”. Então o médico pergunta:
- Ele disse porque morreu? – A irmã do finado estranhou a interrogação do médico, respondendo de uma forma que poderia ser até uma pisada, se não chorasse tanto:
- Não doutor Gerardo, depois que ele morreu não falou mais nada.
Ao notar o efeito da desastrosa pergunta, o médico riu e retificou:
- Eu tô ficando é doido. Eu quero saber o que levou ele a praticar este ato maluco...
A irmã expôs a razão: “doutor, o motivo foi a mulher dele. Ela deixou o pobre e ele não aguantou a separação e suicidou-se”.
Naquele ano, um forro que falava do ‘coração que se apaixona por quem não lher quer’, tomava conta do rádio e das quadras de danças. Associando-a ao episódio do enforcado, Gerardo saiu cantando: “Coracion, porque tu foi se apaixonar, por alguém que não te teve amor, por alguém que não te quer amar”.
Sem querer, eu e dra. Sílvia Pinto, saímos rindo das loucuras do meu compadre